A Luminosa Admiração de Anton e Alba por Craveirinha :
Anjos e Poetas na Correspondência e Homenagens Literárias
Se preferir ler este texto em inglês, clique no seguinte link: https://medium.com/@aasfrancisco/the-luminous-admiration-of-anton-and-alba-for-craveirinha-ce58654c169c.
Nota Introdutória
Caros leitores,
Bem-vindos à 13ª edição da nossa newsletter "Mentes Gémeas: Alba & Anton"!
Nesta edição celebramos a rica troca literária entre Anton, Alba e o icónico poeta moçambicano José Craveirinha, cujo 102º aniversário do nascimento foi celebrado no passado dia 28 de Maio.
Apesar de nos ter deixado fisicamente há 21 anos, Craveirinha permanece uma presença constante e inspiradora através de sua obra literária. Para aqueles que não estão familiarizados com ele, partilhamos de seguida dois links, um para o documentário de 2022, por ocasião dos 100 Anos de José Craveirinha; o segundo link para um poema com narração de Mundo dos Poema:
Cantiga Do Negro Do Batelão | Poema de José Craveirinha com narração de Mundo Dos Poemas
Relevância da Carta de Anton para o Contexto Geral da Edição:
A leitura desta edição começa com uma carta de Anton para Sebastião Alba, destacada por Alba como a última de seu irmão.
Esta carta é um testemunho íntimo da amizade e admiração mútua entre os irmãos e o poeta José Craveirinha. Revela como a poesia influenciou profundamente ambos e destaca a forte conexão emocional e literária entre eles.
A carta oferece uma visão pessoal do impacto de Craveirinha nas suas vidas e na sua escrita, preparando o terreno para os textos aqui incluídos.
Enquadramento da Crónica de Alba sobre Craveirinha:
Após o poema "Anjo Negro" de Alba, que evoca a imagem de um anjo marginalizado e reflete as complexidades da existência humana, incluímos uma crónica de Alba sobre Craveirinha.
Esta crónica não apenas oferece uma homenagem ao poeta, mas também explora a importância de sua obra na resistência cultural e política de Moçambique.
A crónica é essencial para entender a dimensão e profundidade da influência de Craveirinha e o seu papel como inspiração contínua para escritores como Alba e Anton, bem como as novas gerações de escritores.
Para completar esta edição, sugerimos imagens que captam a essência dos textos apresentados: uma representação da correspondência entre os escritores, uma ilustração do anjo negro de Alba e uma foto de Craveirinha em momentos de reflexão.
No final desta nota introdutória, compartilhamos uma fotografia única de José Craveirinha com Sebastião, Rui Nogar e Luís Carlos Patraquim (o único ainda vivo); registo feito por Zé Cabral em 1982, no dia da criação da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), extraída do portal de Venâncio Calisto.
Desejamos a todos uma leitura inspiradora e reflexiva.
O Editor da "Mentes Gémeas: Alba & Anton"
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A Última Carta de Anton para Alba
(carta de António Carneiro Gonçalves para
Sebastião Alba. Foi assinalada por Sebastião Alba como sendo
a última de seu irmão “Anton”.)
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Mano caríssimo:
Como levo as minhas horas a ----- (rasura) e a estudar, mal tenho tempo para escrever meia dúzia de linhas apressadas.
De quando em vez esgalho umas prosas para mim (de cunho acentuadamente pessoal, porque quanto mais pessoal mais universal) e depois, ao fim do dia (o meu dia termina tarde) estou cansado.
Cheguei ontem de Lourenço Marques onde fui “escrever” mais um exame(*).
Só estive com o Craveirinha, poeta a sério, a escrever muito e muito bem, com uma garra do raio. Em poesia, na nossa terra, só acredito nele e em ti.
Tu estás com génio e vem de longe a minha simpática predisposição para te escrever a biografia que conheço e a que os teus poemas tornam pública para os que sabem ler.
Sabes que só o talento dá duas biografias (duas ou mais) à mesma pessoa. E eu tive sempre uma presunção e uma mania – a de que te conheço bem e a de escrever isso.
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Reúnes em altíssimo grau aquela auréola romântica que o vinho e uma quase amoralidade absoluta emprestam aos tipos com génio.
Do meu ponto de vista, isto é, de gajo que quer escrever uma história ou a história de um gajo assim, tu és mais que um bom personagem - és a personagem.
E isto só era cínico se os teus poemas não fossem das únicas coisas de que eu autenticamente me orgulho. Não quis escrever “amoralidade” mas “moral particular”.
Creio mesmo que só na cama consigo aquela espécie de paz interior e justificação absoluta que os teus poemas me dão.
A propósito, gostei do testamento que Monterland assinou dias antes de se suicidar, aos setenta anos: Apenas duas forças me mantiveram vivo - a criação literária e o impulso sexual.
Terminada esta...
Ele escreveu isto doutra maneira, mas disse isto.
Interrompo esta coisa e, como o Heliodoro vai agora, escrevo-te amanhã ou depois com mais vagar.
Beijinhos Toni.
(*) Nota: Frequentava na altura, o curso de História (3° ano) na Universidade de Lourenço Marques.
In: A Escrita de Anton, Carneiro Gonçalves (2021), 2ª Edição Familiar, Editora: Ciedima Lda., págs. 9-10.
ÍCARO(**)
Da Mafalala estorva-nos a memória dos gregos É um anjo negro segregado e assim goza de asas sussurrantes Desce por entre intervalos do vento e findo o voo refunde o modelo de cera Como qualquer pássaro faz ninho ele no vestido das mulheres Sem céu fixo exala a plumagem da comum nudez interrompida.
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(**) Na edição de Albas, Maria de Santa-Cruz apresenta-nos uma primeira versão deste poema, muito mais extensa e dedicada a José Craveirinha, precedida da seguinte anotação do autor:
Querido Zé:
Bêbado, escrevi, ao terceiro dia, um pequeno poema que te dedico e mando.
Dirás, como Sartre e o meu Pai, que sinto a “tentação da irresponsabilidade”. Mas tu sabes que é melhor pôr “não” a algumas responsabilidades cedidas e historicamente comprometedoras. No pior dos sentidos.
Abraça-te o Dinis
Lembro-me de que, um dia, passeando com o Zé Craveirinha, ele me disse com ar infeliz:
«já viste, pá, que nestas igrejas não há um único anjo preto? Os anjos são todos brancos.»
Respondi-lhe que se o anjo da guarda dele fosse branco (e tudo o levava a crer) acabaria por estar lixado mesmo entre os anjos.
Mas bati-lhe no ombro, consolando-o:
«não, pá, um deles deve estar disfarçado».
Era assim que nos ríamos dessas coisas, amargamente.
6/6/91
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LITERATURA, SARDINHAS E NEBLINA
O poeta José Craveirinha vai com frequência a Lisboa, quando souberes que ele chegou, procura-o e leva no bolso uma lata de sardinhas. Embrulhada, porque podem estar, ao lado do Zé, escritores, pessoas igualmente conspícuas.
Basta que lhe digas: “um amigo comum envia-lhe isto”, para que se estabeleçam relações pessoais possivelmente duradoiras.
“Alba: tu às vezes pareces doido; que relação haverá entre a Literatura e meia dúzia de sardinhas enlatadas?”
“O Zé dirá; sobre Literatura e sardinhas em lata sabe mais do que eu. Por isso lhe quero tanto”.
“E ele a ti? ”
“E ele, a mim, também”.“Mas começas a saber tanto como ele acerca de sardinhas de conserva e Literatura?”
“Começo,”
“Custa-te muito?”
“Muito,”
“Alba: por que sublinhas certas palavras?”
“Para te lembrar que ainda escrevo mal.
Sabes o que me dizia o Zé Craveirinha quando me despedi dele?
‘Meu sacana, vou ter saudades dos teus disparates’
E assim deixamos de nos ver, talvez para sempre.
Continuarei a cometer os mesmos disparates, que eu sei que não são (Que raio de língua! Vamos apanhá-la? À esquina?) bem isso, mas outra coisa que não deslindo:
‘Haja névoa,
dancem os véus na minha alma
e externos nas luzes próximas’.
Que venha, homens como nós estão habituados a rompê-la em vão.
Ela adensa-se, em vão.
E assim por diante.
Queridas filhas:
Senti uma alegria incontível, ao ler isto. Mas sei que o Zé dava tudo, as honrarias, os dez mil contos, para que a sua humilde Maria estivesse, como dantes, ao seu lado.
P.S.
Como viram, o «Prémio Camões» só foi atribuído a Miguel Torga e ao grande poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto. Isto é uma honra para nós todos.
A cultura, que parece um apanágio das classes dominantes (para elas, foi sempre um adorno!) é elevada pelos simples.
Mas a atribuição deste prémio tem, ainda, um significado político.
Agora, que estes gajos estão prestes a recolonizar as ex-colónias, a reinstalar-se nelas, ou a «investir», como eles dizem, tentam chamar a si os intelectuais, adulando-os.
Verão que, em breve, escritores angolanos, guineenses, etc., serão também contemplados. Mas ao Zé, que os conhece bem, não o apanham.
Agradece, em vez de dois carapaus come três, e manda-os à merda.
Alba, Sebastião (2023). Todo o Alba. Plural, págs. 78, 344-345, 480, 490-491.